O comunismo era o objetivo, o grande fim, o desiderato, a meta suprema
que iria fazer com que todo o sofrimento da humanidade ao longo da história houvesse
valido a pena.
A
história da humanidade é a história do sofrimento, da luta de classes, da
exploração do homem pelo homem. Da mesma
maneira que o retorno do Messias, na teologia cristã, colocaria um fim à
história e estabeleceria um novo céu e uma nova terra, o estabelecimento do
comunismo colocaria um fim à história humana e criaria um novo paraíso de
abundância.
Façamos
uma análise dos principais pontos do comunismo marxista. Ao contrário dos vários grupos compostos por
socialistas utópicos, e em comum a vários grupos religiosos messiânicos, Karl
Marx não fez nenhum esboço detalhando as características de seu futuro
comunismo. Marx não se preocupou, por
exemplo, em detalhar o número de pessoas que viveriam em sua utopia, nem o formato
e a localização de suas casas, e nem o padrão de suas cidades. Isso é compreensível; afinal, todas as
utopias que são detalhadas pormenorizadamente por seus criadores
inevitavelmente adquirem um aspecto de indelével excentricidade, o que retira
um pouco da seriedade da proposta.
Porém,
ainda mais importante, especificar os detalhes da sociedade ideal imaginada é
um ato que remove o crucial elemento de reverência e mistério deste
supostamente inevitável mundo do futuro.
Da mesma maneira que os atuais filmes de ficção científica perdem seu
glamour e emoção quando, na metade final, os misteriosos, poderosos e até então
invisíveis monstros se materializam em lentas e verdes criaturas em formato de
bolha, as quais já perderam sua aura misteriosa e se tornaram um lugar-comum,
as utopias detalhadamente especificadas também deixam de exercer fascínio sobre
a maioria das pessoas.
No
entanto, dentre todas as visões do comunismo já apresentadas, certas
características são claramente iguais: a propriedade privada é eliminada, o
individualismo é abolido, a individualidade é proibida, todas as propriedades
passam a ser controladas de forma coletiva, e todas as unidades individuais do
novo organismo coletivo são, de uma vaga maneira, iguais umas às outras.
Havia
um motivo para Marx se recusar a especificar como seria a etapa comunista da
humanidade em maiores detalhes: sua utopia era reconhecidamente vaga e indefinida. De um lado, Marx pressupunha e afirmava que,
na futura sociedade comunista, os bens seriam superabundantes. Sendo assim, obviamente, não haveria nenhuma
necessidade de se preocupar com aquele problema universal da humanidade: o fato
de que vivemos em um mundo de escassez, no qual os recursos utilizados para se
alcançar determinados fins não inexoravelmente escassos. Porém, ao supor a ausência deste problema,
Marx simplesmente legou um enigma para suas futuras gerações de seguidores, os
quais, desde então, ainda não chegaram a um consenso em relação à seguinte
questão: afinal, o comunismo irá ele próprio gerar este mágico estado de
superabundância, ou será que temos de
esperar
o capitalismo produzir esta superabundância para, só então, estabelecermos o
comunismo?
De
modo geral, os grupos marxistas resolveram este problema — não na teoria, mas
na prática — aderindo ferrenhamente a qualquer oportunidade ou arranjo
político que os permitisse conquistar ou manter seu poder. Sendo assim, todos os partidos marxistas,
sempre que viram uma oportunidade de tomar o poder, se mostraram
invariavelmente dispostos a pular as "etapas da história" predefinidas por seu
Mestre e a exercer suas próprias e arbitrárias vontades revolucionárias. Da mesma maneira, todas as elites marxistas
que já se encontravam encasteladas no poder tiveram o cuidado de constantemente
adiar para um futuro cada vez mais indefinido, com muito cuidado e astúcia, a
implementação do objetivo final do comunismo.
Por isso os soviéticos, por exemplo, foram céleres em enfatizar o
trabalho duro e o gradualismo como pré-requisitos para se alcançar o estágio
supremo do comunismo, o qual teimava em jamais se concretizar.
Há
vários outros prováveis motivos por que Marx não quis detalhar as
características do comunismo supremo — ou, mais especificamente, as etapas
necessárias para alcançá-lo. Primeiro,
Marx não tinha nenhum interesse nos aspectos econômicos de sua utopia; a
simples pressuposição circular de que haveria uma abundância limitada já era o
bastante. Seu principal interesse estava
nos aspectos filosóficos do comunismo.
Segundo, para Marx, assim como para Hegel, a história necessariamente
progride de acordo com uma dialética mágica, na qual uma etapa inevitavelmente
dá origem a uma outra etapa posterior e contrária.
Na versão neo-hegeliana de Marx, a
"alienação" e o processo "dialético" gerariam a
aufhebung (transcendência) e a negação de
uma etapa histórica, a qual seria substituída por uma outra etapa contrária à
anterior — mais especificamente, a negação da condição maléfica da propriedade
privada e da divisão do trabalho, e o consequente estabelecimento do comunismo,
gerariam uma sociedade em que a unidade do homem com a natureza e seu bem-estar
pleno seriam alcançados. Exceto que,
para Marx, a "dialética" é material em vez de espiritual.
Marx
nunca publicou seus
Manuscritos
Econômicos e Filosóficos de 1844, nos quais as bases filosóficas do
marxismo foram apresentadas. Um ensaio
em particular, "
Propriedade Privada e
Comunismo", continha a mais completa exposição da sociedade comunista. Um dos motivos para sua recusa em publicar estes
manuscritos foi que, nas décadas seguintes, a filosofia hegeliana já havia
saído de moda, mesmo na Alemanha, e os seguidores de Marx estavam mais
interessados nos aspectos econômicos e revolucionários do marxismo.
O comunismo puro
Outro
importante motivo por que Marx não quis publicar estes manuscritos foi
justamente a sua descrição franca e sincera da sociedade comunista no ensaio
"Propriedade Privada e Comunismo". Além
de apresentar um conteúdo totalmente filosófico, em vez de econômico, Marx descreveu
uma etapa horripilante — porém supostamente necessária — de como seria a
sociedade imediatamente
após a
violenta e necessária revolução mundial do proletariado, e
antes
de o comunismo supremo ser finalmente alcançado. Seria a sociedade da
etapa de transição. Esta sociedade pós-revolucionária de Marx —
aquela do comunismo "puro", "cru" ou "grosseiro" — não era exatamente um
tipo
de sociedade que estimularia as energias revolucionárias de seus fieis.
Mais
notavelmente, a descrição feita por Marx de como seria a primeira etapa da sociedade
pós-revolucionária, a qual ele classificou de "comunismo grosseiro", especifica
uma tentativa de se impor o igualitarismo por meio do confisco e expropriação
selvagem e cruel da propriedade privada, seguida de sua destruição. Adicionalmente, as mulheres seriam
coercivamente coletivizadas, bem como toda a riqueza material. Com efeito, a
avaliação
de Marx sobre o comunismo grosseiro, a etapa da ditadura do proletariado, não
era muito romântica:
Esse movimento que tende a opor a propriedade coletivizada
à propriedade privada se exprime de uma forma completamente animal quando contrapõe
o casamento (que é, evidentemente, uma forma de propriedade
privada exclusiva) à coletivização das mulheres: quando a
mulher torna-se uma propriedade coletiva e abjeta.
Pode-se dizer que essa idéia da coletivização das mulheres contém o segredo
dessa forma de comunismo ainda grosseiro e desprovido de espírito. Assim como a mulher deve abandonar o casamento
em prol da prostituição geral, o mesmo deve acontecer com o mundo da riqueza, o
qual deve abandonar sua relação de casamento exclusivo com a propriedade
privada para abraçar uma nova relação de prostituição geral com a coletividade.
Não
bastasse isso, Marx
reconhece
que
O comunismo grosseiro não é a transcendência da propriedade
privada, mas apenas a sua universalização; não é a derrota da ganância, mas
apenas sua generalização; não é a abolição do trabalho, mas sim sua ampliação
para todos os homens. Destarte, a
primeira forma positiva da abolição da propriedade privada, o comunismo grosseiro, não é senão
uma forma na qual toda a abjeção da propriedade privada se torna explícita. [...]
Os pensamentos de toda propriedade privada individual
são, pelo menos, dirigidos contra qualquer propriedade
privada mais abastada, sob a forma de inveja e desejo de reduzir
todos a um mesmo nível; destarte, essa inveja e nivelamento por baixo
constituem, de fato, a essência da competição. O comunismo vulgar é apenas o paroxismo
de tal inveja e nivelamento por baixo, baseado em um mínimo preconcebido.
E
completa,
Eis a razão por que todos os sentimentos físicos e morais foram
substituídos pela simples alienação trazida pela sensação da posse. A essência
humana deveria mergulhar em uma pobreza absoluta para poder fazer surgir dela a
sua riqueza interior!
Em
suma, na etapa de coletivização da propriedade privada, aquelas características
que Marx considera serem as piores da propriedade privada serão
maximizadas. Não somente isso, mas Marx
admite a veracidade da acusação dos anticomunistas de que o comunismo e a
coletivização nada mais são do que, nas palavras do próprio Marx, o paroxismo da
inveja e do desejo de reduzir todos a um mesmo nível. Longe de levar a um florescimento da
personalidade humana, como supostamente afirma Marx, ele próprio admite que o
comunismo irá aboli-la totalmente.
Estas
incisivas ilustrações da maneira como Marx contemplava e avaliava como seria o
período imediatamente pós-revolucionário muito provavelmente explicam a extrema
reticência sobre este tópico que ele viria a demonstrar posteriormente em suas
outras obras publicadas.
Mas
se este comunismo é confessamente tão monstruoso, um regime de "degradação
infinita", como alguém iria defendê-lo?
Mais ainda, por que alguém iria dedicar toda sua vida, e lutar uma
revolução sangrenta, para implementá-lo?
Neste ponto, como frequentemente ocorre nas escritas e no pensamento de
Marx, ele recorre novamente à mística da "dialética" — esta maravilhosa
palavra mágica por meio da qual um determinado sistema social inevitavelmente
produz sua negação transcendental e vitoriosa.
Segundo Marx, a dialética explica como toda a maldade existente — a
qual, interessantemente, se materializa justamente na pós-revolucionária
ditadura do proletariado e não no capitalismo que a precedeu — irá se
transformar na mais completa e pura bondade.
O
mínimo que se pode dizer é que Marx não consegue — e nem tenta — explicar
como um sistema baseado na ganância absoluta irá se transformar em um sistema
sem nenhum resquício de ganância. Ele
deixa tal tarefa a cargo da magia da dialética, sem aparentemente se dar conta
de que agora não há mais a suposta força-motriz da luta de classes para
impulsioná-la — a qual, mesmo sem existir, de alguma forma será capaz de
transformar a monstruosidade do comunismo grosseiro em um paraíso inerente à
etapa final do comunismo.
A dialética da destruição
Em
sua cáustica obra
Crítica ao Programa de Gotha,
escrita em 1875 com o intuito de denunciar membros do Partido Social Democrata
da Alemanha que estavam sob a influência de
Ferdinand Lassalle, Marx
afirma:
Na fase superior da sociedade comunista, quando houver
desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho
e, com ela, o contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual;
quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade
vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos,
crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da
riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito
horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras:
De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades.
O
que Marx está dizendo é que a característica essencial do mundo comunista não é
exatamente nenhum princípio da distribuição de bens, mas sim a
erradicação da divisão do trabalho, o
que magicamente levaria ao desenvolvimento total das capacidades individuais e
a um resultante fluxo de superabundância.
Curiosamente, em um mundo assim, o famoso slogan da última frase, ao
contrário do que se tornou arraigado no imaginário popular, passa a ser de
importância totalmente trivial.
A
absoluta miséria e o total horror da etapa suprema (e, mais ainda, da etapa que
possivelmente viria depois) do comunismo deveriam estar agora já totalmente
aparentes. A erradicação da divisão do
trabalho iria rapidamente gerar a fome e a miséria econômica para todos. A abolição de todas as estruturas de
interrelações humanas traria enormes privações sociais e espirituais para todos
os indivíduos. Até mesmo o suposto
desenvolvimento "artístico" intelectual e criativo das faculdades de todos os
homens seria totalmente afetado pela proibição a todo e qualquer tipo de
especialização. Como pode o genuíno aperfeiçoamento
intelectual ocorrer sem nenhum esforço concentrado? Em suma, o pavoroso sofrimento econômico da
humanidade sob o comunismo seria comparável apenas à sua privação intelectual e
espiritual.
Considerando-se
a natureza e as consequências do comunismo, rotular esta horrenda distopia de 'ideal
nobre e humanista' é algo que pode, na mais benemérita das hipóteses, ser
considerado apenas uma piada medonha, de gosto totalmente questionável. A noção predominante de que o comunismo
marxista é um ideal glorioso para os homens, mas que foi tragicamente pervertido
por figuras como Engels, Lênin ou Stalin, pode agora ser colocada em uma
perspectiva adequada. Nenhum dos
horrores cometidos por Lênin, Stalin ou quaisquer outros regimes
marxistas-leninistas é equiparável à genuína monstruosidade contida no "ideal"
comunista de Marx.
Talvez a aplicação
prática mais fiel à teoria marxista tenha sido o curto regime comunista de Pol
Pot, no Camboja, o qual, ao tentar abolir por completo a divisão do trabalho,
conseguiu impingir o banimento total do uso do dinheiro — de modo que, para
receber suas ínfimas rações, a população dependia totalmente dos avarentos
donativos fornecidos pela burocracia comunista.
Adicionalmente, o regime de Pol Pot tentou eliminar as "contradições
entre cidade e campo", colocando em prática o objetivo de Engels de destruir as
grandes cidades e de coercivamente despovoar a capital do país, Phnom Penh, o
mais rapidamente possível. Em poucos
anos, o grupo de Pol Pot logrou exterminar um terço da população do Camboja, o
que talvez seja um recorde em termos de genocídio.
[1]
Dado
que, sob o comunismo ideal, todos os indivíduos teriam de fazer de tudo, é evidente
que muito pouco poderia ser realizado, mesmo antes da fome generalizada se
manifestar.
Para o próprio Marx, todas
as diferenças entre indivíduos eram "contradições" que deveriam ser eliminadas
pelo comunismo, de modo que, presumivelmente, a massa de indivíduos existentes
teria de ser uniforme e perfeitamente permutável. Haveria um coletivo no qual cada indivíduo
efetuaria qualquer tarefa mesmo sem ter nenhuma especialização.
Ao
passo que, aparentemente, Marx ao menos postulava capacidades intelectuais
normais até mesmo sob o comunismo, alguns marxistas posteriores sequer admitiam
essa restrição. Para eles, a realidade
seria bem mais florida; haveria o surgimento de seres super-humanos, o que
aliviaria enormemente as dificuldades geradas pelo comunismo. Para Karl Kautsky (1854—1938), o marxista
alemão que assumiu o manto da liderança suprema do marxismo após a morte de
Engels em 1895, sob o comunismo "um novo tipo de homem irá surgir ... um
super-homem ... um homem elevado". Leon
Trotsky divagava de modo ainda mais lírico:
"O homem tornar-se-á
incomparavelmente mais forte, mais sábio, mais puro. Seu corpo será mais harmonioso, seus
movimentos serão mais rítmicos, sua voz será mais melódica ... O humano médio
será elevado ao nível de um Aristóteles, de um Goethe, de um Marx. Acima destes
cumes, novos picos surgirão." Se o
estágio que virá após o estágio supremo do comunismo durar tempo o bastante
para criar esta nova super-raça, será um problema para os teóricos comunistas
deste futuro decidir o que fazer quanto à "contradição" de se "permitir" que um
super-Aristóteles se eleve em relação a um Aristóteles. Tamanha desigualdade deverá ser tolerada?
Alguns
libertários se sentem tentados pelo objetivo marxista do "definhamento e
desaparecimento do Estado" sob o comunismo, ou pelo uso da frase — tomada
emprestada dos libertários franceses pró-livre mercado Charles Comte e Charles
Dunoyer —, "um mundo no qual o governo de pessoas é substituído pela
administração de coisas". Há duas
enormes falhas na formulação deste ponto de vista. Primeiro, obviamente, como o anarco-comunista
russo Mikhail Bakunin (1814—76) insistentemente demonstrou, é absurdo tentar
chegar a um arranjo de total ausência de estado por meio da absoluta
maximização do poder estatal em uma totalitária ditadura do proletariado (ou,
mais realisticamente, uma ditadura controlada por uma seleta vanguarda do
suposto proletariado). O resultado será
somente, e inevitavelmente, o estatismo máximo e a subsequente escravidão
máxima. Bakunin profeticamente alertou
para o fato de que uma pequena elite dominante irá novamente, após a revolução
marxista, governar a maioria:
Porém, dizem os marxistas, essa minoria será composta de
operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem
governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e pôr-se-ão a
observar o mundo proletário do topo de sua autoridade estatal; não mais
representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões de governá-lo. Quem
duvida disso não conhece a natureza humana ... Os termos "socialismo
científico" e "socialista científico", os quais encontramos incessantemente nas
obras e nos discursos dos marxistas, são suficientes para comprovar que o
chamado 'estado popular' será nada mais do que um despotismo sobre as massas,
exercido por um nova e relativamente pequena aristocracia formada por falsos
"cientistas". Eles [os marxistas] alegam
que somente uma ditadura — comandada por eles próprios, é claro — pode trazer
liberdade ao povo; nós respondemos que uma ditadura não tem outro objetivo
senão sua própria perpetuação, e que ela não pode gerar outra coisa senão a
escravidão do povo submetido a ela. A
liberdade pode ser criada apenas pela liberdade.[2]
De
fato, somente um crente na irracional magia negra da "dialética" pode acreditar
no contrário, ou seja, que um estado totalitário pode inevitavelmente e de
maneira virtualmente instantânea se transformar em seu oposto, e que, portanto,
a maneira de se livrar do estado é se esforçar ao máximo para maximizar seu
poder.
Mas
o problema da dialética não é o único — na verdade, não é nem o principal —
problema do comunismo marxista. O
marxismo comunga com os anarco-comunistas um grave problema quanto à etapa
superior do comunismo puro (supondo por um momento que tal etapa possa ser
alcançada). O ponto crucial é que, tanto
para estes anarquistas quanto para os marxistas, o comunismo ideal é um mundo
sem propriedade privada, em que todas as propriedades e recursos serão
controlados coletivamente. Com efeito, a
principal reclamação dos anarco-comunistas em relação ao estado é que ele é
supostamente o principal garantidor da propriedade privada, e que, portanto,
para abolir a propriedade privada é necessário abolir o estado. A verdade, obviamente, é exatamente oposta: o
estado, ao longo da história, sempre foi o principal despojador e
espoliador da propriedade privada.
Com
a propriedade privada misteriosamente abolida, a eliminação do estado sob o
comunismo (tanto da variante marxista quanto da variante anarquista) seria
necessariamente uma mera camuflagem para um novo estado que surgiria para
controlar e tomar decisões em relação aos recursos geridos coletivamente —
exceto pelo fato de que o estado não mais seria assim chamado; ele seria
renomeado para algo como "agência estatística popular", mas continuaria armado
precisamente com os mesmos poderes. Será
de muito pouco consolo para as futuras vítimas, encarceradas ou assassinadas
por cometerem "atos capitalistas entre adultos em comum acordo", que seus
opressores não mais sejam o 'estado' mas sim uma 'agência estatística popular'. O estado, sob qualquer que seja seu novo
nome, continuará com o mesmo aroma urticante.
Ademais,
como já indicado, na etapa "além do comunismo", a etapa de coletivização
universal, de inação e de não utilização de recursos, a morte de toda a raça
humana seria a inevitável consequência.
Marx
e seus seguidores nunca demonstraram qualquer consciência em relação à vital
importância do problema da alocação de recursos escassos. Sua visão do comunismo é que todos os
problemas econômicos desse tipo são triviais, e não requerem nem
empreendedorismo, nem um sistema de preços, e nem um genuíno cálculo econômico
— todos os problemas podem ser rapidamente solucionados pela mera
contabilidade ou por simples registros cadastrais. A clássica insensatez em relação a esta
questão foi explicitada por Lênin, que acuradamente expressou a visão de Marx
ao
declarar
que as funções de empreendedorismo e alocação de recursos "já foram
simplificadas ao
máximo pelo capitalismo, que as reduziu às extraordinariamente simples
operações de fiscalização, inscrição e emissão de recibos, algo que qualquer
pessoa que saiba ler, escrever e fazer as quatro operações de aritmética pode
fazer."
Ludwig
von Mises, com muita ironia,
comentou
que os conhecimentos econômicos dos marxistas e dos outros socialistas "não
eram maiores do que os de um garoto de recados cuja única ideia em relação ao
trabalho de um empreendedor é que ele preenche pedaços de papel com letras e
números".
Este artigo foi extraído de trechos do livro Economic Thought Before Adam Smith — An Austrian Perspective
on the History of Economic Thought.
[1] O povo
soviético foi poupado do cataclismo completo do comunismo quando Lênin, um
hábil pragmático, recuou das tentativas soviéticas iniciais (1918—21) de
abolir o dinheiro e ir direto para o comunismo (o qual, mais tarde, foi
rotulado de "comunismo de guerra"), e voltou à economia majoritariamente
capitalista da NEP. Já Mao Tsé-Tung
tentou efetuar o comunismo em
duas desastrosas ondas: o
Grande Salto Para a Frente, o qual tentou eliminar a propriedade privada e as
"contradições" entre cidade e campo por meio da construção de uma siderúrgica
em todas as aldeias, e a Grande Revolução Cultural Proletária, que tentou
eliminar a "contradição" entre trabalho intelectual e trabalho manual enviando
toda uma geração de estudantes para trabalhos forçados nos campos de
Xinjiang.
[2] Bakunin,
Estatismo
e Anarquia: citado em Leszek Kolakowski,
Main Currents of
Marxism: Its Origins, Growth and Dissolution (New York: Oxford
University Press, 1981), I, pp. 251?2. Ver também Abram L. Harris,
Economics
and Social Reform (New York: Harper & Bros, 1958), pp. 149?50.